DIA 252: Desejo de ajudar os outros e a resistência para me ajudar
Tenho-me
apercebido deste fenómeno mental que é o de tentar resolver os problemas dos
outros, ajudar os outros e eventualmente salvar os outros de um mal qualquer.
Não deixa de ser interessante todo o processo mental de acreditar que o
problema do outro é mais simples de resolver, ou até mesmo conseguir ver
claramente o que é que o outro deve fazer para resolver o problema. Talvez seja
com base neste vírus mental que a sociedade actual apresenta casos em que se
espera ser salvo por alguém, ao mesmo tempo que nos sentimentos extremamente
orgulhosos quando ajudamos alguém e somos tomados como "anjos".
Porque é que
frequentemente somos capazes (de acordo com a nossa mente) resolver mais
facilmente o problema que o outro apresente do que resolver os nossos próprios
problemas? Será que acreditamos que conhecemos o outro melhor do que ele se
conhece a si mesmo?
No meu caso,
apercebi-me também que esta personalidade consegue tomar proporções extremas de
me punir mentalmente quando não consigo ajudar o outro. Já não é tanto querer
ajudar mas é o ego de ser reconhecido pelo outro, de cumprir uma missão, de
fazer "o bem", de evitar a dissonância cognitiva entre aquilo que se
acredita e o que se faz - no final de contas, trata-se de ter controlo sobre a
vida da outra pessoa, o que é uma forma de poder ilusório. Seguramente, aquilo
que se perde é o controlo da sua própria vida...
Pergunto-me:
desde quando é que não ajudar o outro é um acto de egoísmo? Será que ajudar o
outro sem se primeiro ajudar a si próprio não é um acto de desonestidade
própria? Como é que se estabelece um equilíbrio de modo a não comprometer-se a
própria vida quando se está sob o saviour
syndrome?
Ultimamente
tenho ponderado sobre estes pontos, especialmente quando se trata de ajudar os
outros financeiramente. Convém antes de mais lembrar que, o dinheiro, ao
contrário da cultura, não uma coisa que se dá sem se perder: quando se dá
dinheiro a outra pessoa, fica-se sem ele. Seria interessante que o dinheiro
tivesse a capacidade de se expandir e partilhar da mesma forma como a cultura e
a educação passam de uns para os outros. Certamente que muitos problemas neste
mundo deixariam de existir...
O outro
fenómeno que se tem de ter em consideração é a noção do emprestadar, ou seja, a ilusão de que se vai reaver o dinheiro
aparentemente emprestado. Uma ferramenta fundamental nestes casos é a
comunicação para que ambas as partes estejam claras sobre o destino do dinheiro
e da própria relação - as assumpções que um vai devolver o dinheiro pode não
corresponder à vontade do outro e, por isso, se esta situação for planeada e
discutida logo desde o princípio podem-se evitar surpresas desagradáveis.
O desejo de
ajudar o outro tem uma polaridade: a negação de se ajudar a si próprio. Vejo
que ajudar os outros pode facilmente tornar-se num hobbie ou mesmo numa distração para se evitar olhar para os
próprios problemas dos quais cada um individuo é responsável.
Quanto à
honestidade própria, será que emprestar-se dinheiro realmente ajuda o outro?
Dar-se dinheiro a uma pessoa viciada no jogo irá provavelmente alimentar o
vício. Dependendo da extensão do vício, negar-se essa ajuda pode ser realmente
uma ajuda para a pessoa ver o ciclo que está a criar em si própria. Ao mesmo
tempo, é óbvio que dar dinheiro num dia não vai resolver a origem do problema.
Aquando da
minha estadia na Africa do Sul, deparei-me com um caso em que um mendigo me
abordou de forma implacável e emocionalmente forte e, apesar de inicialmente eu
acreditar que o podia ajudar, a situação acabou por envolver os seguranças do
centro comercial e causou mais problemas para o mendigo e insegurança em mim.
Com isto quero dizer que cada um de nós irá ter de inevitavelmente perceber que
nenhuma destas atitudes serve para si próprio: nem a manipulação sentimental
dos outros, nem o desejo de ajudar baseado na culpa de se ter mais do que o
outro.
No que
respeita ao sistema económico, para-se resolver um problema gigante será
necessária uma solução em grande, que realmente garanta que cada ser humano
tenha acesso aos recursos necessários
para uma vida digna (ver por exemplo Rendimento Básico Incondicional e o
Rendimento de Vida).
Ao vermos
que aju-dar nem sempre é o melhor
remédio, podemo-nos questionar sobre o que é que é realmente honesto na relação
com a outra pessoa? Em vez de dizer o
que o outro deve fazer ou ser, porque não sê-lo também e tornar-se num exemplo
da eficácia de tal aplicação?
Cada um tem
de se responsabilizar pelo que se passa dentro de si mesmo- o seu Processo de Vida.
Outra
realização fundamental é a de perceber que nada na realidade individual de cada
um vai mudar se a própria pessoa não mudar - e no que toca à mudança (de
pensar, de ver as coisas), cada um só pode fazê-lo por si.
A relação
que se tem para com o dinheiro e para com os outros reflecte a relação que se
tem consigo próprio, e este é um novo ponto a investigar em mim.
Salvar os
outros pode ser então um espelho da ideia que tenho de mim própria: a ideia de
que preciso de ser salva de algo ou de alguém, a ideia que não sou capaz de
resolver os meus problemas e que preciso que alguém os resolva por mim. Por
isso, apesar de saber aquilo que tenho de resolver em mim, é aparentemente mais
fácil olhar para o problema do outro, talvez porque não conheço a altura do
abismo do outro tão bem como conheço o meu. Em honestidade própria eu sei por
onde começar.
Ilustração by Andrew Gable.